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Mapa manuscrito, do século XVIII, da costa atlântica do Brasil – de Ilhéus ao Rio da Prata. Domínio público, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro |
Ocupação Histórica do Sul do Brasil
Uma História de Fronteiras e Identidades
Conteúdo (texto)
Texto
A Ocupação do Sul do Brasil: Uma História de Fronteiras e Identidades
Imaginem uma época em que uma linha imaginária, traçada em 1494 por diplomatas europeus que nunca pisaram na América, determinava até onde os portugueses podiam avançar no território brasileiro. O Tratado de Tordesilhas estabeleceu que os lusitanos deveriam se limitar à região de Laguna, em Santa Catarina. Mas a história real foi muito diferente da teoria.
A ocupação histórica do Sul do Brasil, entre os séculos XV e XIX, foi marcada por intensas disputas territoriais, migrações variadas e a constituição de uma sociedade profundamente diversificada. O litoral, antes vasto e pouco explorado, tornou-se alvo do interesse português e espanhol por conta das riquezas minerais, do comércio e da possibilidade de expansão da pecuária, especialmente após a expulsão dos jesuítas e a formação das primeiras vilas em São Francisco do Sul, Desterro e Laguna.
O Tratado de Tordesilhas estabeleceu, em teoria, uma divisão rígida, mas o avanço dos estudos históricos revela que, na prática, o território ao sul de Paranaguá – conhecido entre os séculos XVI e XVII como Continente do Rio Grande – permanecia praticamente inexplorado por europeus até meados do século XVII. Um divisor de águas foi a fundação da Colônia do Sacramento, que, situada estrategicamente em frente a Buenos Aires, tornou-se palco de disputas acirradas entre as coroas portuguesa e espanhola e de rotas de contrabando que ligavam o interior sul-americano, especialmente Potosí, ao litoral brasileiro.
Durante o século XVII, a descoberta de ouro de lavagem nos rios do litoral sul atraiu os primeiros colonos portugueses para além das fronteiras estabelecidas. Diferentemente das grandes minas de Minas Gerais, este ouro era extraído diretamente dos rios, em pequenas quantidades, mas suficientes para motivar a fundação de vilas como São Francisco do Sul (1658), Desterro - atual Florianópolis (1675) e Laguna (1688).
A expulsão dos jesuítas pelos bandeirantes paulistas teve consequências inesperadas: o gado bovino, antes confinado às missões, espalhou-se livremente pelos campos naturais da região. Esta dispersão animal transformou a pecuária extensiva na principal atividade econômica do Sul, mais rentável até mesmo que a mineração aurífera. A pecuária, impulsionada após o declínio missionário e a dispersão do gado pelos campos – com base no trabalho de indígenas, portugueses e africanos –, alavancou a dinâmica econômica regional. O bandeirantismo, notadamente de apresamento, ganhou espaço, enquanto surgiam vilas compostas por soldados, desertores e aventureiros de diversas origens, como destaca Golin (1994), reforçando o caráter social híbrido da colonização.
Durante a União Ibérica (1580-1640), quando Portugal e Espanha estavam sob a mesma coroa, surgiu uma figura fascinante: os peruleiros. Estes comerciantes portugueses ambulantes criaram uma rede de contrabando que conectava o Brasil às minas de prata de Potosí, na atual Bolívia, passando por Buenos Aires. Tecidos ingleses, escravos africanos e açúcar brasileiro eram trocados pela prata peruana, burlando o rígido monopólio comercial espanhol.
O papel dos “peruleiros” ilustra a complexidade dessas redes comerciais: eles cruzavam o Rio da Prata, transgredindo regulações oficiais, e reconfiguravam a circulação de prata, tecidos e escravizados entre o Brasil, Buenos Aires e as minas do Alto Peru. Como observado em diversas fontes primárias, “O porto de Sacramento foi durante décadas um entreposto vital para o escoamento da prata peruana e de couro gaúcho, contrariando a política alfandegária da coroa espanhola”. Tais práticas impulsionaram a polarização entre interesses metropolitanos e locais, catalisando conflitos armados e alterações nos tratados de fronteira.
Em 1680, D. Manuel Lobo fundou a Colônia do Sacramento, bem em frente a Buenos Aires, com o apoio dos moradores do Rio de Janeiro. A expedição incluía soldados, presidiários e indígenas - uma mistura que refletia a diversidade da sociedade colonial. Sacramento tornou-se rapidamente um centro de contrabando luso-inglês e o principal ponto de escoamento da prata peruana.
Mas Sacramento não teve vida fácil. Entre 1680 e 1750, a cidade mudou de mãos pelo menos seis vezes, alternando entre domínio português e espanhol. Cada conquista e reconquista refletia não apenas conflitos locais, mas também as guerras europeias que se estendiam até as colônias americanas. Em 1726, os espanhóis fundaram Montevidéu especificamente para isolar Sacramento e controlar o comércio platino.
O ponto de virada veio em 1737, quando o Brigadeiro Silva Pais fundou o Forte Jesus Maria José na entrada da Lagoa dos Patos. Este forte militar tornou-se a base para o povoamento efetivo do "Continente do Rio Grande" - como era chamado o atual Rio Grande do Sul. Os primeiros habitantes eram uma mistura fascinante: soldados, desertores, prostitutas, vagabundos e aventureiros vindos de todas as regiões do Brasil.
No século XVIII, a chegada de imigrantes açorianos introduziu novos elementos à formação regional, como práticas agrícolas, festas religiosas e famílias numerosas, que alteraram o perfil demográfico e cultural, sobretudo em Santa Catarina e no litoral gaúcho. Já no século XIX, o fluxo de imigrantes alemães diversificou ainda mais o tecido social na região.
Esta diversidade de origem criou uma sociedade de fronteira única, onde diferentes culturas se misturaram e criaram novas identidades. O gaúcho, figura emblemática da cultura sulista, é produto direto deste processo histórico de miscigenação e adaptação ao ambiente de fronteira.
Em 1750, o Tratado de Madri redefiniu definitivamente as fronteiras: Portugal cedeu Sacramento à Espanha, mas garantiu vastos territórios na Amazônia, Mato Grosso e as sete missões jesuíticas. Este acordo provocou a Guerra Guaranítica, quando os indígenas resistiram à transferência de suas terras.
A ocupação do Sul do Brasil não foi apenas uma expansão territorial, mas um processo complexo de formação de identidades regionais, miscigenação cultural e criação de redes comerciais que conectavam o Brasil ao sistema econômico mundial. As fronteiras não eram apenas linhas geográficas, mas espaços de encontro, conflito e criação de novas sociedades.
Esta história nos ensina que as identidades regionais não são naturais nem imutáveis, mas produtos de processos históricos específicos. O Sul do Brasil, com sua cultura distintiva, é resultado direto dos conflitos, negociações e misturas que caracterizaram sua ocupação colonial. Compreender este passado é fundamental para entender as particularidades regionais que ainda hoje marcam a sociedade brasileira.
Glossário:
Sátrapa: Governador provincial nomeado pelo rei persa
Dárico: Moeda de ouro padronizada criada por Dario I
Ahura Mazda: Deus supremo do zoroastrismo
Pairidaeza: Jardim murado persa, origem da palavra "paraíso"
Estrada Real: Principal via de comunicação do império
Mapa Conceitual
Bullet Point
I. CONTEXTO INICIAL E TRATADO DE TORDESILHAS (1494)
- Linha imaginária traçada por diplomatas europeus que nunca pisaram na América
- Limitação teórica: portugueses deveriam se limitar à região de Laguna (SC)
- Realidade prática: história real foi muito diferente da teoria
- Território ao sul de Paranaguá: conhecido como "Continente do Rio Grande"
- Permanecia praticamente inexplorado por europeus até meados do século XVII
- Vasto e pouco explorado inicialmente
II. DESCOBERTA DO OURO DE LAVAGEM (SÉCULO XVII)
- Tipo de ouro: extraído diretamente dos rios do litoral sul
- Características: pequenas quantidades, diferente das grandes minas de Minas Gerais
- Impacto: atraiu primeiros colonos portugueses para além das fronteiras estabelecidas
- Fundação de vilas motivada pelo ouro:
- São Francisco do Sul (1658)
- Desterro/Florianópolis (1675)
- Laguna (1688)
III. EXPULSÃO DOS JESUÍTAS E EXPANSÃO DA PECUÁRIA
- Ação dos bandeirantes paulistas: expulsaram jesuítas das missões
- Consequência inesperada: gado bovino espalhou-se livremente pelos campos naturais
- Transformação econômica: pecuária extensiva tornou-se principal atividade econômica
- Mais rentável que a mineração aurífera
- Baseada no trabalho de indígenas, portugueses e africanos
- Bandeirantismo de apresamento: ganhou espaço na região
- Formação de vilas: compostas por soldados, desertores e aventureiros de diversas origens
- Caráter social híbrido da colonização (Golin, 1994)
IV. UNIÃO IBÉRICA E OS PERULEIROS (1580-1640)
- Contexto: Portugal e Espanha sob a mesma coroa
- Os peruleiros: comerciantes portugueses ambulantes
- Rede de contrabando: conectava Brasil às minas de prata de Potosí (Bolívia)
- Rota comercial: passava por Buenos Aires
- Mercadorias trocadas:
- Tecidos ingleses
- Escravos africanos
- Açúcar brasileiro
- Prata peruana (recebida em troca)
- Objetivo: burlar o rígido monopólio comercial espanhol
- Complexidade das redes: transgrediam regulações oficiais
- Impacto: reconfiguravam circulação entre Brasil, Buenos Aires e Alto Peru
- Polarização: entre interesses metropolitanos e locais
V. FUNDAÇÃO DA COLÔNIA DO SACRAMENTO (1680)
- Fundador: D. Manuel Lobo
- Localização estratégica: em frente a Buenos Aires
- Apoio: moradores do Rio de Janeiro
- Composição da expedição:
- Soldados
- Presidiários
- Indígenas
- Reflexo da diversidade da sociedade colonial
- Função: centro de contrabando luso-inglês
- Importância: principal ponto de escoamento da prata peruana
- Porto de Sacramento: entreposto vital para prata peruana e couro gaúcho
VI. CONFLITOS E ALTERNÂNCIA DE DOMÍNIO (1680-1750)
- Instabilidade: cidade mudou de mãos pelo menos 6 vezes
- Alternância: entre domínio português e espanhol
- Causas dos conflitos:
- Disputas locais
- Guerras europeias que se estendiam às colônias americanas
- 1726: espanhóis fundaram Montevidéu
- Objetivo específico: isolar Sacramento
- Controlar o comércio platino
- Vida difícil: constantes conquistas e reconquistas
VII. FUNDAÇÃO DO FORTE JESUS MARIA JOSÉ (1737)
- Responsável: Brigadeiro Silva Pais
- Localização: entrada da Lagoa dos Patos
- Significado: ponto de virada na ocupação
- Função: base para povoamento efetivo do "Continente do Rio Grande"
- Primeiros habitantes (mistura fascinante):
- Soldados
- Desertores
- Prostitutas
- Vagabundos
- Aventureiros vindos de todas as regiões do Brasil
VIII. IMIGRAÇÕES E FORMAÇÃO SOCIAL
- Século XVIII: chegada de imigrantes açorianos
- Práticas agrícolas
- Festas religiosas
- Famílias numerosas
- Alteração do perfil demográfico e cultural (SC e litoral gaúcho)
- Século XIX: fluxo de imigrantes alemães
- Diversificação do tecido social regional
IX. TRATADO DE MADRI (1750)
- Redefinição definitiva das fronteiras
- Portugal cedeu: Sacramento à Espanha
- Portugal garantiu:
- Vastos territórios na Amazônia
- Mato Grosso
- Sete missões jesuíticas
- Consequência: Guerra Guaranítica
- Resistência indígena à transferência de terras
X. FORMAÇÃO DE IDENTIDADES REGIONAIS
- Sociedade de fronteira única: diferentes culturas se misturaram
- Criação de novas identidades
- O gaúcho: figura emblemática da cultura sulista
- Produto direto do processo histórico de miscigenação
- Adaptação ao ambiente de fronteira
- Diversidade de origem: criou identidade regional específica
XI. SIGNIFICADO HISTÓRICO E LEGADO
- Não apenas expansão territorial: processo complexo de formação identitária
- Aspectos envolvidos:
- Formação de identidades regionais
- Miscigenação cultural
- Criação de redes comerciais globais
- Fronteiras: não eram apenas linhas geográficas
- Espaços de encontro
- Espaços de conflito
- Espaços de criação de novas sociedades
- Conexão mundial: ligavam Brasil ao sistema econômico mundial
XII. LIÇÕES PARA O PRESENTE
- Identidades regionais: não são naturais nem imutáveis
- Produto histórico: resultado de processos históricos específicos
- Sul do Brasil: cultura distintiva resultado direto de:
- Conflitos
- Negociações
- Misturas da ocupação colonial
- Importância: compreender o passado é fundamental para entender particularidades regionais que marcam a sociedade brasileira atual
Apresentação de Slides
Linha do Tempo
Linha do Tempo de Eventos Chave
-
Assinatura do Tratado de Tordesilhas. [Fonseca (1994)]
-
Fundação de São Francisco do Sul. [Golin (1994)]
-
Fundação de Desterro (Florianópolis). [Golin (1994)]
-
Fundação da Colônia do Sacramento. [Maestri (2014)]
-
Fundação de Laguna (SC). [Golin (1994)]
-
Colônia do Sacramento sob domínio espanhol. [Maestri (2014)]
-
Tratado de Utrecht. [Maestri (2014)]
-
Fundação de Montevidéu pelos espanhóis. [Maestri (2014)]
-
Fundação do Forte Jesus Maria José no RS. [Golin (1994)]
-
Tratado de Madri: troca de Sacramento por vastos territórios amazônicos. [Maestri (2014)]
-
Intensificação da imigração açoriana em SC e RS. [Simioni (2020)]
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Teste Seus Conhecimentos (Modelo ENEM)
Para Saber Mais
Para Saber Mais: Sugestões de Conteúdo Complementar
1. CINEMA
- Filme: “O Quatrilho” – Drama histórico sobre a imigração italiana no RS. Disponível em plataformas de streaming.
2. LITERATURA
- Livro: “O Tempo e o Vento” (Erico Verissimo) – Romance clássico que narra a formação social do Sul.
- HQ: “Aventuras de Tibicuera” (Erico Verissimo) – Narrativa infantojuvenil sobre a formação da região.
- Livro: “Senhores e Escravos” (Jacob Gorender) – Análise da sociedade escravocrata no Sul do Brasil.
3. DOCUMENTÁRIOS E SÉRIES
- Documentário: “Fronteiras da Memória” – Série sobre a disputa de territórios no Cone Sul, TV Cultura/YouTube.
- Série: “A Invenção do Sul” – Documentário histórico no Canal Curta!
4. ÓPERA
- Ópera: “Guarani” (Carlos Gomes) – Aborda os conflitos indígenas na região sul.
5. JOGOS
- Jogo eletrônico: “Brazil Empire” (PC) – Simulador de expansão territorial e colonial.
6. TEATRO
- Peça de teatro: “Bendito Seja o Homem que Faz Chover” – Tratamento poético dos ciclos migratórios em SC.
7. EXPOSIÇÕES
- Exposição: “Missões: 300 anos de história” – Museu das Missões (RS).
8. PODCASTS
- Podcast: “História Preta – Ep. O Negro no Sul do Brasil” – Diversos agregadores.
Tem alguma indicação de livro, filme, HQ ou outra mídia sobre este tema? Deixe nos comentários!
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Bibliografia e Análise Historiográfica
Bibliografia Consolidada (ABNT)
Sugestões de obras gerais para aprofundamento sobre a Ocupação Histórica do Sul do Brasil:
- CARNEIRO, Gilberto. Patrimônio negro invisibilizado em Laguna. Revista Gestão, Inovação e Tecnologias, 2021.
- FONSECA, Pedro C. Portugueses, espanhóis e as fronteiras do sul do Brasil. Estudos Ibero-Americanos, 1998.
- FONTES, Maria F. Estado e cultura política no Sul do Brasil. Revista Interação, 2024.
- GOLIN, Tau. A formação histórica do Rio Grande do Sul: O indígena no discurso luso-brasileiro. Estudos Ibero-Americanos, 1994.
- GOMES, Angela de Castro. As missões jesuíticas e a resistência indígena. História Social, 2019.
- MAESTRI, Mário. Geopolítica e migrações no contexto de Utrecht: Colonos portugueses no Brasil meridional. Cuadernos de Historia Moderna, 2014.
- OLIVEIRA, Lúcio Tadeu de. Dinâmica da agricultura em regiões periféricas: Porto Lucena e Porto Vera Cruz. Extensão Rural, 2022.
- SANTOS, Luciana. Populações indígenas frente à Colônia do Sacramento. Revista de Indias, 2023.
- SIMIONI, Ana Paula Vosne. Uma questão de (in)civilidade no Brasil Meridional: A imigração açoriana no Rio Grande do Sul através da historiografia clássica. Brazilian Journal of Political Economy, 2020.
- VIEIRA, Cidiana F. Imigração alemã: mulheres e perspectivas de gênero. Ágora, 2018.
Texto Científico para Universitários
A ocupação histórica do Sul do Brasil entre os séculos XV e XIX constitui um processo complexo que transcende a tradicional narrativa da expansão portuguesa, revelando uma dinâmica multifacetada de disputas territoriais, redes comerciais transnacionais e formação de sociedades de fronteira. O Tratado de Tordesilhas estabeleceu limites teóricos que, na prática, foram constantemente redefinidos através de conflitos armados, negociações diplomáticas e estratégias de povoamento.
A descoberta de ouro de lavagem no século XVII catalisou a formação dos primeiros núcleos coloniais estáveis - São Francisco do Sul (1658), Desterro (1675) e Laguna (1688) - que funcionaram como postos avançados da colonização portuguesa em território teoricamente limitado pelo acordo ibérico. A expulsão dos jesuítas pelos bandeirantes paulistas não apenas alterou o equilíbrio demográfico regional, mas também promoveu a dispersão do gado bovino, transformando a pecuária extensiva na base econômica da ocupação territorial.
O fenômeno dos peruleiros durante a União Ibérica (1580-1640) exemplifica a complexidade das redes comerciais coloniais, conectando o Brasil ao sistema econômico do Alto Peru através do contrabando de prata, tecidos e escravizados. Esta atividade comercial ilícita, que desafiava o monopólio espanhol, demonstra como os agentes locais frequentemente subvertiam as políticas metropolitanas em benefício próprio.
A fundação da Colônia do Sacramento em 1680 por D. Manuel Lobo representa o ápice da estratégia portuguesa de penetração no estuário platino. Sua alternância de domínio entre portugueses e espanhóis (1680-1750) reflete não apenas as tensões locais, mas também os conflitos europeus, particularmente a Guerra de Sucessão Espanhola, que reverberaram nas colônias americanas.
A análise das fontes primárias - correspondências administrativas, tratados diplomáticos, registros paroquiais e documentação militar - revela a heterogeneidade dos agentes envolvidos no processo de ocupação. Soldados, desertores, comerciantes, missionários, indígenas e escravizados africanos participaram ativamente da formação das primeiras comunidades, criando uma sociedade colonial caracterizada pela diversidade étnica e cultural.
O estabelecimento do Forte Jesus Maria José em 1737 pelo Brigadeiro Silva Pais marca o início da ocupação sistemática do "Continente do Rio Grande", transformando um território de fronteira em espaço colonial integrado ao sistema português. Esta estratégia de povoamento militar, combinada com a atração de colonos açorianos, consolidou a presença lusitana na região.
A historiografia contemporânea sobre a ocupação do Sul do Brasil tem superado interpretações tradicionais centradas exclusivamente na ação bandeirante ou na expansão portuguesa, incorporando perspectivas que valorizam a agência indígena, a presença africana e a formação de identidades regionais específicas. Esta renovação metodológica, baseada na análise serial de fontes primárias e na aplicação de conceitos da História Social, tem revelado a complexidade dos processos de territorialização e etnogênese que caracterizaram a formação da sociedade sulista.
A historiografia sobre a ocupação do Sul do Brasil experimentou notável inflexão nos últimos 35 anos, com o predomínio crescente das abordagens da História Social e da ênfase na diversidade de sujeitos e fontes. O campo, tradicionalmente dominado pela perspectiva luso-brasileira e por uma narrativa de conquista e expansão, passou a problematizar, especialmente após os anos 1990, a pluralidade de agentes envolvidos no processo de colonização – indígenas, africanos, europeus, crioulos – reconhecendo suas respectivas agências, resistências e redes sociais.
O papel da Colônia do Sacramento permanece tema central, sendo ora interpretada como enclave militar estratégico, ora como pivô do contrabando que articulava interior e litoral via fluxos ilícitos de prata, escravizados e gêneros agrícolas (Golin, 1994; Maestri, 2014). A historiografia recente utilizou sistematicamente documentação primária dos arquivos Ultramarino, Nacional e paroquiais, valorizando inventários, correspondências e registros cartorários para ampliar o escopo analítico, sobretudo em pesquisas de orientação micro-histórica e prosopográfica.
Análises comparadas evidenciam divergências sobre o grau de espontaneidade da ocupação, o protagonismo indígena e o impacto das relações luso-espanholas. As interpretações marxistas, embora ainda presentes, foram parcialmente suplantadas por abordagens conectadas ao paradigma atlântico e aos estudos subalternos, com destaque para dimensões ambientais, de gênero e etnicidade (Fontes, 2020; Gomes, 2019).
Apesar dos avanços, persistem lacunas no estudo do período pré-1680, na exploração de fontes documentais locais e na transversalização dos recortes nacionais e regionais. O diálogo com a produção internacional e os estudos sobre história atlântica impõem novas agendas teórico-metodológicas, como sugere Maestri (2014): “O trabalho interdisciplinar amplia a compreensão da constituição territorial a partir de múltiplos horizontes do Atlântico Sul”.
Como conclusão, a produção acadêmica demanda renovação constante, problematização das permanências e rupturas, além do investimento em pesquisas interdisciplinares que privilegiem a multiplicidade documental e a crítica das narrativas hegemônicas – uma tarefa que permanece tão atual quanto urgente.
Fontes Selecionadas e Análise Crítica
Fontes Principais Identificadas:
- Geopolítica e Migrações no Contexto de Utrecht (2014)
- Aborda as emigrações portuguesas para a Colônia do Sacramento entre 1715-1750
- Analisa as negociações entre Espanha e Portugal
- Utiliza fontes primárias do Arquivo Histórico Ultramarino
- Historiografia sobre Açorianos no Rio Grande do Sul (2020)
- Examina diferentes visões sobre imigrantes açorianos na historiografia rio-grandense
- Identifica construção de perfis pelos autores clássicos
- Problematiza representações sobre identidade gaúcha
- Ocupação Territorial e Cultura Política no Sul (2024)
- Discute relação entre ocupação territorial e formação da cultura política
- Analisa desde período colonial até contemporaneidade
- Propõe hipótese sobre cultura política de subserviência
- Patrimônio Negro Invisibilizado em Laguna (2021)
- Investiga preservação do patrimônio afro-brasileiro em Laguna
- Contextualiza dentro do Tratado de Tordesilhas
- Utiliza pesquisa histórica e análise iconográfica
Documentação e Referências ABNT
Fontes Primárias Identificadas:
- Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa)
- Correspondências sobre Colônia do Sacramento (1680-1750)
- Documentação sobre União Ibérica e peruleiros
- Registros de fundação de vilas e presídios
- Arquivo Histórico José Feliciano Fernandes Pinheiro (Porto Alegre)
- Documentação sobre açorianos no Rio Grande do Sul
- Registros paroquiais do século XVIII
- Inventários de estancieiros
- Arquivo Nacional (Rio de Janeiro)
- Documentação sobre bandeirismo e apresamento
- Registros da fundação do Presídio Jesus Maria José (1737)
- Correspondências do Brigadeiro Silva Pais
Síntese Historiográfica Crítica
Principais Correntes Interpretativas (1990-2025):
- Historiografia Tradicional Luso-Brasileira
- Ênfase na ação portuguesa e bandeirante
- Destaque para aspectos político-militares
- Representada por autores como Tau Golin e Mário Maestri
- Nova História Social
- Foco em grupos sociais diversos (açorianos, indígenas, africanos)
- Análise de relações sociais e culturais
- Influência da micro-história italiana
- História Atlântica
- Perspectiva transnacional da ocupação
- Conexões com África e Europa
- Análise de redes comerciais e migratórias
Debates e Controvérsias:
- Sobre a Colônia do Sacramento:
- Função comercial versus militar
- Papel do contrabando na economia regional
- Relações com populações indígenas
- Sobre o Bandeirismo:
- Caráter espontâneo versus planejado
- Relações com jesuítas e missões
- Impacto na ocupação territorial
- Sobre a Imigração Açoriana:
- Características dos imigrantes
- Processo de integração social
- Contribuição para identidade regional
Análise de Fontes Primárias Mobilizadas
Tipologias Documentais Utilizadas:
- Correspondências Administrativas
- Cartas de governadores e capitães-generais
- Relatórios de militares e funcionários régios
- Comunicações entre autoridades locais e metropolitanas
- Documentação Eclesiástica
- Registros paroquiais de batismo, casamento e óbito
- Relatórios de missionários jesuítas
- Documentação sobre fundação de igrejas
- Documentação Cartorária
- Inventários post-mortem
- Registros de sesmarias
- Escrituras de compra e venda
Arquivos Recorrentes:
- Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa)
- Arquivo Nacional (Rio de Janeiro)
- Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
- Arquivo da Cúria Metropolitana de Porto Alegre
Contextualização Teórico-Metodológica
Influências Historiográficas:
- Escola dos Annales
- Longa duração e estruturas
- História das mentalidades
- Análise de conjunturas
- Marxismo Histórico
- Análise de classes sociais
- Conflitos e contradições
- Modo de produção colonial
- Micro-História
- Redução de escala
- Estudos de caso
- Análise intensiva de fontes
Métodos Predominantes:
- Análise serial de documentos
- Prosopografia de grupos sociais
- Cartografia histórica
- Análise de redes sociais
Agenda de Pesquisa e Expansão
Temas Emergentes:
- História Ambiental
- Impacto ecológico da colonização
- Transformações da paisagem
- Relações sociedade-natureza
- História Indígena
- Agência dos povos nativos
- Resistência e adaptação
- Etnogênese e territorialização
- História Atlântica
- Conexões transoceânicas
- Circulação de pessoas e ideias
- Redes comerciais globais
Lacunas Identificadas:
- Fontes Primárias Subutilizadas
- Documentação de arquivos locais
- Inventários e testamentos
- Processos judiciais coloniais
- Perspectivas Teóricas
- Análise pós-colonial
- Estudos de gênero
- História das emoções
- Cronologia
- Período pré-1680 pouco estudado
- Transição século XVIII-XIX
- Conexões com período republicano
Conclusões e Recomendações:
A análise historiográfica sobre a ocupação histórica do Sul do Brasil (1990-2025) revela um campo de estudos em constante renovação, mas com lacunas significativas. A produção acadêmica, embora qualificada, apresenta concentração em determinados temas e períodos, necessitando de maior diversificação temática e metodológica.
As principais contribuições identificadas apontam para uma compreensão mais complexa do processo de ocupação, superando visões tradicionais centradas exclusivamente na ação portuguesa. A incorporação de perspectivas da História Social, estudos sobre grupos subalternos e análise de redes sociais tem enriquecido o debate historiográfico.
Para o futuro, recomenda-se:
- Maior exploração de arquivos locais e regionais
- Incorporação de metodologias interdisciplinares
- Análise comparativa com outros processos coloniais
- Estudos sobre longa duração e permanências
- Pesquisas sobre impactos ambientais e transformações da paisagem
A historiografia sobre o Sul do Brasil mantém sua relevância acadêmica e social, contribuindo para a compreensão dos processos formativos da sociedade brasileira e das especificidades regionais no contexto nacional.
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